sexta-feira, 18 de maio de 2012

INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA – A FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES CONTRA OS DIREITOS HUMANOS



Thalita Joana da Silva Gonzaga

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO, 2. REQUISITOS BÁSICOS QUE ENSEJAM A POSSIBILIDADE DE SUSCITAR O INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA 3. ASPECTOS PROCESSUAIS DO INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA 4. PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL – A GRANDE CRÍTICA

1. INTRODUÇÃO
O incidente de deslocamento de competência é um instituto relativamente novo no ordenamento jurídico brasileiro. Criado pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, que ficou amplamente conhecida como “Reforma do Poder Judiciário”, seu primeiro caso concreto foi apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça em 2005 por ocasião do assassinato da missionária Dorothy Stang, desde então vem sendo apreciado com polêmica e dividindo a opinião de juristas e operadores do direito nacional.

Pela nova redação do § 5º, do art. 109 da C, poderia ocorrer um deslocamento da competência da Justiça Estadual para a Federal, para processar e julgar crimes que violam gravemente os direitos humanos, com o objetivo de assegurar os compromissos assumidos pela União em tratados internacionais:

Art. 109 - Aos juízes federais compete processar e julgar:
...............................................................................................................
 V-A - as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste
artigo;
...............................................................................................................
................
§ 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.

Flávia Piovesan admite que esse dispositivo se justifica porque a União deve responder internacionalmente pelos tratados internacionais ratificados pelo Brasil no caso de violação. É sob ela que recairá a responsabilidade internacional decorrente da violação de dispositivos internacionais que se comprometeu juridicamente a cumprir. Contudo, considerando-se as vias processuais e jurídicas atuais, não é a União que detém a responsabilidade nacional para processar tais crimes, uma vez que não tem competência para realizar a persecução penal e menos ainda para punir em caso de violação. Assim, ela responde internacionalmente, mas, grosso modo, nacionalmente ela não pode exercer controle. Segundo a Procuradora:

Em um momento em que se vive a "humanização do Direito Internacional" e "internacionalização dos direitos humanos", com a consolidação de garantias internacionais de proteção, amplia-se enormemente a responsabilidade internacional do Estado (no caso brasileiro, da União). A título de exemplo, cabe mencionar que atualmente estão pendentes na Comissão Interamericana de Direitos Humanos mais de quarenta casos internacionais contra o Brasil, que poderão (se houver fatos novos) ser submetidos à jurisdição da Corte Interamericana. Uma vez mais, é a União que será convidada a responder internacionalmente pela violação.[1]

Nesta via, este artigo pretende analisar o instituto do deslocamento de competência partindo da observação dos requisitos necessários para que o incidente possa ser suscitado, bem como sua intercomunicação com as demais figuras determinantes do panorama legislativo, principalmente no que tange a garantia constitucional do juiz natural, princípio basilar e cláusula pétrea da Carta Magna.


2. REQUISITOS BÁSICOS QUE ENSEJAM A POSSIBILIDADE DE SUSCITAR O INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA

Para que seja acolhido o pedido de deslocamento de competência é necessária a presença cumulativa de alguns requisitos básicos. Para muitos a Emenda Constitucional nº 45/2004 não deixa claro os critérios para a provocação do incidente, sendo considerado, em grande parte da doutrina, que a descrição dos requisitos é vaga e abre espaço para, por exemplo, a possibilidade de escolha do juiz. Como se observa não é pacífico para os operadores do direito, o que necessariamente deve se fazer imperativo na análise da questão. Contudo, ao apreciar o IDC, no caso da missionária Dorothy Stang, o Superior Tribunal de Justiça teve brilhante clareza em pontuar os requisitos:

O deslocamento de competência – em que a existência de crime praticado com grave violação aos direitos humanos é pressuposto de admissibilidade do pedido – deve atender ao princípio da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), compreendido na demonstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia, negligência, falta de vontade política ou de condições reais do Estado-membro, por suas instituições, em proceder à devida persecução penal. No caso, não há a  umulatividade de tais requisitos, a justificar que se acolha o incidente.[2]

A Constituição Federal fala em grave violação dos direitos humanos. Contudo o rol de crimes que ensejariam a possibilidade de suscitar o incidente não é taxativo. Quando se fala em grave violação deve-se ter em mente que não é qualquer causa relacionada a direitos humanos que deverá tramitar na Justiça Federal. Em primeiro lugar cria-se regra de competência baseada em conceito jurídico indeterminado: “grave violação de direitos humanos”. Embora não seja comum essa opção, pois gera certa insegurança, é compreensível. O objetivo não declarado é o de retirar da competência da Justiça Estadual causas que, em razão da sua magnitude, pudessem vir a sofrer com influências políticas locais. É medida que se assemelha ao desaforamento, no procedimento para apuração de crimes dolosos contra a vida, perante o Tribunal do Júri.

É necessário reste comprovada ocorrência de fatos que entravem o normal deslinde do feito, dentre eles o STJ assinalou a inércia, falta de vontade política ou de condições reais do Estado da federação dar continuidade às diligências necessárias através de suas instituições. Fica claro neste requisito que deve haver uma morosidade comprovada do andamento processual para que se justifique o deslocamento. No caso Dorothy Stang, por exemplo, entendeu-se que a Justiça Estadual do Pará estava por demais célere e que o acolhimento do pedido só contribuiria para o atraso no julgamento.

Por outra via, outro caso em que foi suscitado o incidente de deslocamento de competência ocorreu por ocasião do assassinato do vereador Manoel Bezerra de Mattos, atuante no combate a grupos de extermínios, em Janeiro de 2009, no município de Pitimbú no estado da Paraíba. Nesse caso o STJ entendeu que a competência deveria ser deslocada justamente porque o Estado-membro já havia demonstrado a incapacidade de lidar com a questão, uma vez que já existiam vários arquivamentos de inquéritos e processos contra os acusados. A inércia da Justiça Estadual tinha ficado clara, pois soma-se aos arquivamentos o envolvimento de diversas autoridades públicas influentes e agentes policiais.

Interessante a colocação de Fredie Didier:

(...) Nesse particular, o legislador, embora tenha mostrado certa preocupação a direitos humanos, pareceu dispensar uma maior confiança a Justiça Federal, como se esta operasse melhor e com mais isenção do que a Justiça Estadual. O que, sabemos, nem sempre é verdade. Tanto é assim que até o presente momento o STJ se tem manifestado no sentido de que é imperativa a demonstração de incapacidade de as autoridades do Estado-membro desincumbirem-se a contento de suas funções para que o mecanismo presente no parágrafo quinto do art. 109 da CF seja ativado.[3]

Outro pressuposto para a admissibilidade é que o pleito atenda ao princípio da proporcionalidade, pelo que deve ser demonstrada concretamente a existência de risco real no descumprimento das obrigações decorrentes de tratados internacionais nos quais o Brasil é signatário.


3. ASPECTOS PROCESSUAIS DO INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA

Processualmente o Promotor de Justiça do Estado peticiona ao Procurador-Geral da República e este suscita junto ao Superior Tribunal de Justiça a possibilidade de deslocar a competência através do Incidente de Deslocamento de Competência. Não há tempo ou fase processual específica para que seja atravessado o pedido, podendo o mesmo ser apresentado em qualquer fase do inquérito ou processo. Como a corte responsável por dirimir conflitos entre os órgãos da União é o STJ, será ele o responsável por definir se a Justiça Federal será ou não a competente para o caso em análise.

É importante observar que, sendo competência do STJ o julgamento desse incidente de deslocamento de competência, caberá, contra a sua decisão, recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal. Primeiro, a matéria é constitucional e segundo não há qualquer violação constitucional nesse sentido. Sucede que será recurso extraordinário para a discussão de tipo constitucional composto de conceito jurídico indeterminado, o que se admite, embora seja tema controvertido na doutrina.

Vale ressaltar que a nova regra de competência se dirige somente aos casos  que poderiam tramitar perante os juízes federais monocráticos da primeira instância. Observa-se que não houve qualquer alteração das regras de competência que estabelecem “foros privilegiados” para certas autoridades, que devem ser processadas perante tribunais.

Por último, no sentido processual, caso o Superior Tribunal de Justiça acolha o pedido de deslocamento de competência, os atos até então praticados são validos, pois a autoridade era competente. O julgamento do STJ é fato superveniente que altera a competência absoluta ex nunc.

Na análise há ainda o respeito à ampla defesa e ao contraditório. Tendo em vista o entendimento do STJ, que considera pressuposto para a federalização da competência para processar e julgar a causa a incapacidade de as autoridades estaduais desincumbirem-se a contento das suas funções, é indispensável o estabelecimento do contraditório, neste incidente, que envolva essas mesmas autoridades. Enfim, o promotor de justiça, o juiz de direito devem ser ouvidos neste incidente, sendo-lhes permitido demonstrar que estão cumprindo satisfatoriamente com as suas tarefas e que, portanto, a transferência da causa para a Justiça Federal é desnecessária.



4. PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL – A GRANDE CRÍTICA

Como já dito o IDC foi alvo de diversas críticas por todos os operadores do direito. A principal delas seria que o deslocamento de competência fere gravemente a garantia constitucional do principio do juiz natural, previsto no art. 5º, inciso LIII, da Constituição Federal de 1988. De acordo com o texto “Ninguém será processado ou sentenciado senão pela autoridade competente”. Dessa forma, ninguém poderá ser processado ou julgado por autoridade especialmente designada para o caso. Esse dispositivo visa assegurar o julgamento por um juiz independente e imparcial. Somente a CF, as leis processuais e as leis de organização judiciária podem fixar regras de competência. Isto é, vedam-se julgamentos realizados por tribunais extraordinários, constituídos após os fatos, e especificamente para julgar determinados crimes.

Para o jurista Leonardo José Carneiro da Cunha, que reputa inconstitucional a regra do art. 109, V-A, da CF/88, acrescentado pela Emenda Constitucional n. 45/2004, por violar o direito fundamental ao juiz natural:

(...) normas de competência não podem estar fundadas em conceitos jurídicos determinados, devendo sua previsão constar de termos precisos e rigorosos, constantes de leis formais, sob a pena de gerar manipulações ou modificações de competência, por critérios que não sejam estritamente formais, gerando incertezas e atentando não apenas contra a segurança jurídica, mas igualmente, sobretudo, contra a própria garantia do juiz natural.[4]


Em corrente contrária, Gilmar Ferreira Mendes defende que a possível objeção quanto a intervenção ou restrição à autonomia dos Estados-membros da Justiça Estadual pode ser respondida pelo apelo aos valores envolvidos (proteção dos direitos humanos e compromisso da União de defesa no plano internacional) e com o caráter excepcional da medida. O deslocamento de competência somente em casos de extrema gravidade poderá ser objetivo de requerimento, por parte do Procurador-Geral da República, e de eventual deferimento por parte do Superior Tribunal de Justiça.

5. CONCLUSÃO
O incidente de deslocamento de competência, quando aprovado mediante a correta análise dos requisitos pode ser um importante dispositivo para a proteção dos direitos humanos.

Beneficia a projeção internacional do país na medida em que permite à União sanar eventuais falhas na apuração e condenação dos crimes de grave violação dos direitos humanos, como observado no caso do vereador Manuel Mattos. Obedece ao princípio da proporcionalidade por tutelar o bem jurídico de maior importância. Contudo, se não observado os requisitos poderá servir de entrave à celeridade. Foi o que observou o STJ ao indeferir o deslocamento no caso Dorothy Stang. A despeito da repercussão internacional do fato e de toda a pressão sofrida pelo judiciário, o STJ não permitiu a federalização, uma vez que a Justiça Estadual do Pará estava trabalhando a contento no caso, como restou demonstrado. Naquela ocasião deslocar a competência significava atrasar o julgamento.

Assim, fica claro que, como todo instrumento jurídico, o IDC poderá ser uma ferramenta positiva do ordenamento jurídico, desde que observados os requisitos e princípios fundamentais pilares da norma pátria.


6. NOTAS


[1] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos Internacionais e Jurisdição Supra-Nacional: A exigência da Federalização. DHnet. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan_federalizacao.html>  Acesso em 10.05.2012.

[2] BRASIL. Incidente de Deslocamento de Competência nº 01. Relator Min. Arnaldo Esteves de Lima. Terceira Seção. Diário de Justiça, 10.10.2005. p. 01 e 02.

[3] DIDIER JR., FREDIE. Curso de Direito Processual Civil. 11ª Ed. São Paulo: Editora Podium, 2009. p.163.

[4] CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Jurisdição e competência. São Paulo: RT, 2008. p.106.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004. Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-A, 103B, 111-A e 130-A, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 31.12.2004.

______. Superior Tribunal de Justiça. Incidente de Deslocamento de Competência nº 01. Relator Min. Arnaldo Esteves de Lima. Terceira Seção. Diário de Justiça, 10.10.2005. p. 217.

______. Superior Tribunal de Justiça. Incidente de Deslocamento de Competência nº 02. Relatora Min. Laurita Vaz. Julgamento em 27.10.2010, pendente de publicação.

CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Jurisdição e competência. São Paulo: RT, 2008.

DIDIER JR., FREDIE. Curso de Direito Processual Civil. 11ª Ed. São Paulo: Editora Podium, 2009.

MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

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