Thalita Joana da Silva Gonzaga
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO, 2. REQUISITOS
BÁSICOS QUE ENSEJAM A POSSIBILIDADE DE SUSCITAR O INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE
COMPETÊNCIA 3. ASPECTOS PROCESSUAIS DO INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA
4. PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL – A GRANDE CRÍTICA
1. INTRODUÇÃO
O incidente de
deslocamento de competência é um instituto relativamente novo no ordenamento
jurídico brasileiro. Criado pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, que ficou
amplamente conhecida como “Reforma do Poder Judiciário”, seu primeiro caso
concreto foi apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça em 2005 por ocasião do
assassinato da missionária Dorothy Stang, desde então vem sendo apreciado com
polêmica e dividindo a opinião de juristas e operadores do direito nacional.
Pela nova redação
do § 5º, do art. 109 da C, poderia ocorrer um deslocamento da competência da Justiça
Estadual para a Federal, para processar e julgar crimes que violam gravemente os
direitos humanos, com o objetivo de assegurar os compromissos assumidos pela
União em tratados internacionais:
...............................................................................................................
V-A - as causas relativas a direitos humanos a
que se refere o § 5º deste
artigo;
...............................................................................................................
................
§ 5º
Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da
República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações
decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja
parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase
do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a
Justiça Federal.
Flávia
Piovesan admite que esse dispositivo se justifica porque a União deve responder
internacionalmente pelos tratados internacionais ratificados pelo Brasil no
caso de violação. É sob ela que recairá a responsabilidade internacional
decorrente da violação de dispositivos internacionais que se comprometeu
juridicamente a cumprir. Contudo, considerando-se as vias processuais e
jurídicas atuais, não é a União que detém a responsabilidade nacional para
processar tais crimes, uma vez que não tem competência para realizar a
persecução penal e menos ainda para punir em caso de violação. Assim, ela responde
internacionalmente, mas, grosso modo, nacionalmente ela não pode exercer
controle. Segundo a Procuradora:
Em um
momento em que se vive a "humanização do Direito Internacional" e
"internacionalização dos direitos humanos", com a consolidação de
garantias internacionais de proteção, amplia-se enormemente a responsabilidade
internacional do Estado (no caso brasileiro, da União). A título de exemplo,
cabe mencionar que atualmente estão pendentes na Comissão Interamericana de
Direitos Humanos mais de quarenta casos internacionais contra o Brasil, que
poderão (se houver fatos novos) ser submetidos à jurisdição da Corte
Interamericana. Uma vez mais, é a União que será convidada a responder
internacionalmente pela violação.[1]
Nesta via, este
artigo pretende analisar o instituto do deslocamento de competência partindo da
observação dos requisitos necessários para que o incidente possa ser suscitado,
bem como sua intercomunicação com as demais figuras determinantes do panorama
legislativo, principalmente no que tange a garantia constitucional do juiz
natural, princípio basilar e cláusula pétrea da Carta Magna.
2. REQUISITOS BÁSICOS QUE ENSEJAM A
POSSIBILIDADE DE SUSCITAR O INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA
Para que seja acolhido o pedido de deslocamento de
competência é necessária a presença cumulativa de alguns requisitos básicos. Para
muitos a Emenda Constitucional nº 45/2004 não deixa claro os critérios para a
provocação do incidente, sendo considerado, em grande parte da doutrina, que a
descrição dos requisitos é vaga e abre espaço para, por exemplo, a
possibilidade de escolha do juiz. Como se observa não é pacífico para os
operadores do direito, o que necessariamente deve se fazer imperativo na
análise da questão. Contudo, ao apreciar o IDC, no caso da missionária Dorothy
Stang, o Superior Tribunal de Justiça teve brilhante clareza em pontuar os requisitos:
O deslocamento de competência – em que a
existência de crime praticado com grave violação aos direitos humanos é
pressuposto de admissibilidade do pedido – deve atender ao princípio da proporcionalidade
(adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito), compreendido
na demonstração concreta de risco de descumprimento de obrigações decorrentes
de tratados internacionais firmados pelo Brasil, resultante da inércia,
negligência, falta de vontade política ou de condições reais do
Estado-membro, por suas instituições, em proceder à devida persecução
penal. No caso, não há a
umulatividade de tais requisitos, a justificar que se acolha o incidente.[2]
A Constituição Federal fala em grave violação dos
direitos humanos. Contudo o rol de crimes que ensejariam a possibilidade de
suscitar o incidente não é taxativo. Quando se fala em grave violação deve-se
ter em mente que não é qualquer causa relacionada a direitos humanos que deverá
tramitar na Justiça Federal. Em primeiro lugar cria-se regra de competência
baseada em conceito jurídico indeterminado: “grave violação de direitos
humanos”. Embora não seja comum essa opção, pois gera certa insegurança, é
compreensível. O objetivo não declarado é o de retirar da competência da
Justiça Estadual causas que, em razão da sua magnitude, pudessem vir a sofrer
com influências políticas locais. É medida que se assemelha ao desaforamento,
no procedimento para apuração de crimes dolosos contra a vida, perante o
Tribunal do Júri.
É necessário reste comprovada ocorrência de fatos
que entravem o normal deslinde do feito, dentre eles o STJ assinalou a
inércia, falta de vontade política ou de condições reais do Estado da federação
dar continuidade às diligências necessárias através de suas instituições. Fica
claro neste requisito que deve haver uma morosidade comprovada do andamento
processual para que se justifique o deslocamento. No caso Dorothy Stang, por
exemplo, entendeu-se que a Justiça Estadual do Pará estava por demais célere e
que o acolhimento do pedido só contribuiria para o atraso no julgamento.
Por
outra via, outro caso em que foi suscitado o incidente de deslocamento de
competência ocorreu por ocasião do assassinato do vereador Manoel Bezerra de
Mattos, atuante no combate a grupos de extermínios, em Janeiro de 2009, no
município de Pitimbú no estado da Paraíba. Nesse caso o STJ entendeu que a
competência deveria ser deslocada justamente porque o Estado-membro já havia
demonstrado a incapacidade de lidar com a questão, uma vez que já existiam
vários arquivamentos de inquéritos e processos contra os acusados. A inércia da
Justiça Estadual tinha ficado clara, pois soma-se aos arquivamentos o
envolvimento de diversas autoridades públicas influentes e agentes policiais.
Interessante
a colocação de Fredie Didier:
(...) Nesse particular, o legislador, embora tenha
mostrado certa preocupação a direitos humanos, pareceu dispensar uma maior
confiança a Justiça Federal, como se esta operasse melhor e com mais isenção do
que a Justiça Estadual. O que, sabemos, nem sempre é verdade. Tanto é assim que
até o presente momento o STJ se tem manifestado no sentido de que é imperativa
a demonstração de incapacidade de as autoridades do Estado-membro
desincumbirem-se a contento de suas funções para que o mecanismo presente no
parágrafo quinto do art. 109 da CF seja ativado.[3]
Outro pressuposto para a admissibilidade é que o
pleito atenda ao princípio da proporcionalidade, pelo que deve ser demonstrada
concretamente a existência de risco real no descumprimento das obrigações
decorrentes de tratados internacionais nos quais o Brasil é signatário.
3. ASPECTOS
PROCESSUAIS DO INCIDENTE DE DESLOCAMENTO DE COMPETÊNCIA
Processualmente
o Promotor de Justiça do Estado peticiona ao Procurador-Geral da República e
este suscita junto ao Superior Tribunal de Justiça a possibilidade de deslocar
a competência através do Incidente de Deslocamento de Competência. Não há tempo
ou fase processual específica para que seja atravessado o pedido, podendo o
mesmo ser apresentado em qualquer fase do inquérito ou processo. Como a corte
responsável por dirimir conflitos entre os órgãos da União é o STJ, será ele o
responsável por definir se a Justiça Federal será ou não a competente para o
caso em análise.
É importante
observar que, sendo competência do STJ o julgamento desse incidente de
deslocamento de competência, caberá, contra a sua decisão, recurso
extraordinário para o Supremo Tribunal Federal. Primeiro, a matéria é
constitucional e segundo não há qualquer violação constitucional nesse sentido.
Sucede que será recurso extraordinário para a discussão de tipo constitucional
composto de conceito jurídico indeterminado, o que se admite, embora seja tema
controvertido na doutrina.
Vale ressaltar
que a nova regra de competência se dirige somente aos casos que poderiam tramitar perante os juízes
federais monocráticos da primeira instância. Observa-se que não houve qualquer
alteração das regras de competência que estabelecem “foros privilegiados” para
certas autoridades, que devem ser processadas perante tribunais.
Por último, no
sentido processual, caso o Superior Tribunal de Justiça acolha o pedido de
deslocamento de competência, os atos até então praticados são validos, pois a
autoridade era competente. O julgamento do STJ é fato superveniente que altera
a competência absoluta ex nunc.
Na análise há
ainda o respeito à ampla defesa e ao contraditório. Tendo em vista o
entendimento do STJ, que considera pressuposto para a federalização da
competência para processar e julgar a causa a incapacidade de as autoridades
estaduais desincumbirem-se a contento das suas funções, é indispensável o
estabelecimento do contraditório, neste incidente, que envolva essas mesmas
autoridades. Enfim, o promotor de justiça, o juiz de direito devem ser ouvidos
neste incidente, sendo-lhes permitido demonstrar que estão cumprindo
satisfatoriamente com as suas tarefas e que, portanto, a transferência da causa
para a Justiça Federal é desnecessária.
4. PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL – A GRANDE
CRÍTICA
Como
já dito o IDC foi alvo de diversas críticas por todos os operadores do direito.
A principal delas seria que o deslocamento de competência fere gravemente a
garantia constitucional do principio do juiz natural, previsto no art. 5º,
inciso LIII, da Constituição Federal de 1988. De acordo com o texto “Ninguém será processado ou sentenciado
senão pela autoridade competente”. Dessa forma, ninguém poderá ser
processado ou julgado por autoridade especialmente designada para o caso. Esse
dispositivo visa assegurar o julgamento por um juiz independente e imparcial.
Somente a CF, as leis processuais e as leis de organização judiciária podem
fixar regras de competência. Isto é, vedam-se julgamentos realizados por
tribunais extraordinários, constituídos após os fatos, e especificamente para
julgar determinados crimes.
Para o jurista
Leonardo José Carneiro da Cunha, que reputa inconstitucional a regra do art.
109, V-A, da CF/88, acrescentado pela Emenda Constitucional n. 45/2004, por
violar o direito fundamental ao juiz natural:
(...) normas de competência não podem estar fundadas
em conceitos jurídicos determinados, devendo sua previsão constar de termos
precisos e rigorosos, constantes de leis formais, sob a pena de gerar
manipulações ou modificações de competência, por critérios que não sejam
estritamente formais, gerando incertezas e atentando não apenas contra a
segurança jurídica, mas igualmente, sobretudo, contra a própria garantia do juiz
natural.[4]
Em corrente
contrária, Gilmar Ferreira Mendes defende que a possível objeção quanto a
intervenção ou restrição à autonomia dos Estados-membros da Justiça Estadual
pode ser respondida pelo apelo aos valores envolvidos (proteção dos direitos
humanos e compromisso da União de defesa no plano internacional) e com o
caráter excepcional da medida. O deslocamento de competência somente em casos
de extrema gravidade poderá ser objetivo de requerimento, por parte do
Procurador-Geral da República, e de eventual deferimento por parte do Superior
Tribunal de Justiça.
5. CONCLUSÃO
O incidente de
deslocamento de competência, quando aprovado mediante a correta análise dos
requisitos pode ser um importante dispositivo para a proteção dos direitos
humanos.
Beneficia a
projeção internacional do país na medida em que permite à União sanar eventuais
falhas na apuração e condenação dos crimes de grave violação dos direitos
humanos, como observado no caso do vereador Manuel Mattos. Obedece ao princípio
da proporcionalidade por tutelar o bem jurídico de maior importância. Contudo,
se não observado os requisitos poderá servir de entrave à celeridade. Foi o que
observou o STJ ao indeferir o deslocamento no caso Dorothy Stang. A despeito da
repercussão internacional do fato e de toda a pressão sofrida pelo judiciário,
o STJ não permitiu a federalização, uma vez que a Justiça Estadual do Pará
estava trabalhando a contento no caso, como restou demonstrado. Naquela ocasião
deslocar a competência significava atrasar o julgamento.
Assim, fica
claro que, como todo instrumento jurídico, o IDC poderá ser uma ferramenta
positiva do ordenamento jurídico, desde que observados os requisitos e
princípios fundamentais pilares da norma pátria.
6. NOTAS
[1]
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos
Internacionais e Jurisdição Supra-Nacional: A exigência da Federalização. DHnet. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan_federalizacao.html> Acesso em 10.05.2012.
[2] BRASIL. Incidente de Deslocamento de Competência nº 01.
Relator Min. Arnaldo Esteves de Lima. Terceira Seção. Diário de Justiça,
10.10.2005. p. 01 e 02.
[3]
DIDIER JR., FREDIE. Curso de Direito Processual Civil. 11ª Ed. São Paulo:
Editora Podium, 2009. p.163.
[4]
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Jurisdição e competência. São Paulo: RT,
2008. p.106.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Emenda Constitucional nº 45, de 30 de
dezembro de 2004. Altera dispositivos dos arts. 5º, 36, 52, 92, 93,
95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127,
128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os
arts. 103-A, 103B, 111-A e 130-A, e dá outras providências. Diário Oficial da
União, 31.12.2004.
______. Superior Tribunal de Justiça. Incidente de Deslocamento de
Competência nº 01. Relator Min. Arnaldo Esteves de Lima. Terceira Seção. Diário
de Justiça, 10.10.2005. p. 217.
______. Superior Tribunal de Justiça. Incidente de Deslocamento de
Competência nº 02. Relatora Min. Laurita Vaz. Julgamento em 27.10.2010,
pendente de publicação.
CUNHA, Leonardo
José Carneiro da. Jurisdição e competência. São Paulo: RT, 2008.
DIDIER JR.,
FREDIE. Curso de Direito Processual Civil. 11ª Ed. São Paulo: Editora Podium,
2009.
MENDES, Gilmar
Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2008.