Aluna: Dayana da Costa Bernardo
Índice: Introdução;
1.Questões Religiosas; 2.Questões Jurídicas; 3.Direito à Vida e a Dignidade da
Pessoa Humana; 4.Direito de Recusa por convicções Religiosas; 5.Direito a Vida
versus Direito de Recusa; 6.Questões Médicas; 7.Conclusão.
Introdução
O presente
trabalho tem por objetivo buscar o entendimento de conflitos de direitos
fundamentais, tentando explicar sobre crenças religiosas que negam a transfusão
de sangue, mesmo em caso de iminente risco de morte, e de que forma, e até onde
o direito e a medicina podem intervir.
Utilizar-nos-emos
do exemplo das Testemunhas de Jeová que se negam a tal procedimento. Para isso
nos aprofundaremos um pouco mais na sua história, crenças, base religiosa e
principalmente nos dizeres da sua Bíblia.
Tal recusa
por pacientes adeptos desta religião tem uma aparente colisão de direitos
fundamentais, envolvendo o direito à vida e o direito de recusa por convicções
religiosas, ambos assegurado igualmente por lei, mesmo porque nenhum direito é
absoluto, nem mesmo o direito à vida, prova disto é a permissão
constitucional,em alguns países, de condenação a pena de morte, e a
possibilidade de realização de aborto autorizado judicialmente em caso de
gravidez proveniente do crime de estupro.
Lembrando
sempre que minha intenção jamais será criticar e discriminar qualquer religião, e nem a maneira de
conduzi-la, e sim explicar e argumentar sobre seus princípios, crenças e
embasamentos para certas atitudes. .
1.
Questões Religiosas
O primeiro
presidente e principal fundador das Testemunhas de Jeová, Charles Taze Russel,
que iniciou suas atividades por volta de 1892, seguido por Joseph Rootherford
(1930), baseado na Bíblia específica dessa religião-"Tradução do Novo
Mundo das Escrituras Sagradas" (esta por sua vez é baseada no Antigo
Testamento) - proibiu apenas a ingestão do sangue, exemplo: carnes cruas,
carnes ao molho pardo, chouriços, etc.Pois este é a vida do corpo, e ao comê-lo
você estaria se alimentando da vida de outro ser que havia sido morto.
Foi a
partir de seu terceiro presidente, Nathan knorr, que a transfusão de sangue foi
vedada, com a seguinte declaração: “A transfusão do sangue humano constitui
violação do concerto de Jeová, ainda que esteja em jogo a vida do
paciente".
Esta
proibição foi baseada em alguns trechos da Bíblia, como em Levítico:
_ "Toda
alma que comer qualquer sangue, esta alma terá de ser decepada do seu
povo" (7:27)
_ "Pois
a alma da carne está no sangue, e eu mesmo o pus para vós sobre o altar para
fazer expiação pelas vossas almas, porque é o sangue que faz expiação pela alma"
(17:11)
Também há
citações em Atos:
_ "Mas
escrever-lhes que se abstenham da s coisas poluídas põe ídolos, e da
fornicação, e do estrangulado, e do sangue"(15:20)
E também,
entre tantos outros, no capítulo 15 de João:
_ "Somente
a carne com a sua alma-seu sangue-não deveis comer. E, além disso, exigirei de
volta o vosso sangue das vossas almas (...)"
No entanto
soam um tanto mal compreendidos devido à utilização de termo ingestão e não transfusão de sangue, até pelo motivo de que nos tempos Bíblicos
não existia ainda esse meio, impossibilitando que as escrituras tratassem
explicitamente sobre o assunto uma vez que a primeira transfusão sanguínea
ocorreu em meados do século XV.
Há outros
trechos da mesma Bíblia que colocam em contradição essas proibições. Afinal,
Cristo não deu sua vida e seu sangue, para nós podermos viver?
Em João
podemos observar vários trechos que nos colocam frente a essas contradições:
_ "Mas,
todo aquele que tiver meios deste mundo para sustentar a vida e obsevar que seu
irmão padece necessidade, e ainda assim lhe fechar a porta das suas eternas
compaixões, de que modo permanece nele o amor de Deus?" (3:17)
_ "Este
é o meu mandamento, que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei" (15:12)
- Ele nos amou, deu Sua vida,Sua alma, Seu sangue por nós. Não podemos
interpretar de forma a fazer o mesmo por nossos "irmãos"?
_ "Ninguém
tem mais amor do que este, que alguém que entregue a sua alma a favor do seu amigo" (15:13) - podemos observar nos
trechos que, de acordo com as Testemunhas de Jeová, proíbem a transfusão de
sangue, que a alma é o sangue do corpo.
2.
Questões Jurídicas
A realização de procedimentos
terapêuticos que inclua transfusão sanguínea em pacientes adeptos da religião "Testemunha
de Jeová" é uma questão polêmica que há tempos preocupa médicos e instiga
juristas.
Os profissionais da saúde veem-se
acuados diante de tal situação por carregarem consigo o dever, como médicos, de
preservar o direito, mas essencialmente de qualquer se humano: a vida.
Os juristas, por sua vez, sentem-se
instigados a dissertar o conflito de direitos fundamentais que o tema
proporciona. Diante dessas primeiras considerações, indaga-se: é aceitável o
ordenamento jurídico permitir a recusa de um determinado individuo à realização
de determinado tratamento no caso, a transfusão sanguínea, imprescindível à
preservação de sua vida, por convicções religiosas?
E esta pessoa estiver em eminente
risco de morte e não puder manifestar a sua vontade naquele momento? Pode o
médico, nesta situação, deixar de realizar transfusão sanguínea com base na
recusa manifestada pelos responsáveis por aquele paciente?
O que ocorre, então, se o paciente é
menor de idade? Têm os pais o direito de dispor da vida seus filhos?
Pode se perceber que se trata de uma
questão assaz conflituosa, pois abarca colisão de direitos fundamentais, no
entanto esse conflito é apenas aparente, pois tem possibilidade de solução no
caso concreto, como será demonstrado nos tópicos que seguem.
O objetivo, aqui, será analisar
estes direitos fundamentais que aparentemente colidem, e apontar uma possível
forma de ponderação de valores envolvidos.
3.
Direito à Vida e a Dignidade da
Pessoa Humana
Para existir, o direito à vida não
necessita de reconhecimento expresso de sua existência em nenhum texto legal.
Porém, a inserção do direito à vida de preservar a vida.
Ainda que dotado de inegável
relevância jurídica, o direito à vida não possui caráter absoluto. E isso é
confirmado pelo Código Penal, no qual conta a permissão de realização do
aborto, quanto resultante de crime de estupro, em que numa ponderação de
valores, a liberdade sexual prevalece sobre o bem vida, com fundamento da
dignidade da pessoa gestante.
O direito à vida é um valor relativo,
presente em nossa Constituição como fundamental, e será digno de preponderância
quando posto em contraposição com outros direitos fundamentais que mais se
aproximar da dignidade da pessoa humana.
4.
Direito de recusa por convicções
Religiosas
A liberdade está intimamente ligada
à legalidade, pois, em conjunto, significam que as pessoas são livres para
exercerem quaisquer atos, salvo aqueles proibidos por lei.
O direito à liberdade possui vários
elementos que compõe, sendo que, entre eles, está presente o direito à
liberdade religiosa e com isso a recusa de certos atos e tratamentos por
convicções religiosas (neste caso, a transfusão de sangue) também com
fundamento na garantia da liberdade de consciência e de crença.Estas estão
asseguradas pela Constituição, em seu art.5° inc.VI, ao determinar a sua
inviolabilidade.
O dispositivo constitucional
concretiza uma das vertentes da liberdade de expressão de pensamentos: a
liberdade de espírito. Dessa forma, há que se perceber o direito à liberdade de
consciência e de crença como valores diferentes que se igualam na medida em q
ue a Constituição protege a recusa à prática de determinados atos devido à
autonomia individual, que podem ser motivados por ordem religiosa ou não.
Define-se assim, que a recusa se dará
por motivos de foro íntimo, ou convicções pessoais, e será garantida, desde que
não contrarie a ordem pública ou não importe em ofensa a outro valor que,
considerando o caso concreto, se imponha superior e, assim, prevaleça.
5.
Direito à Vida versus Direito de
Recusa por convicção Religiosa
No caso de transfusões de sangue em
Testemunha de Jeová, há um aparente conflito entre o direito fundamental à vida
e o direito fundamental à liberdade de consciência e de crença, mais
especificamente, o direito de recusa por convicções de ordem religiosa.
A liberdade religiosa deve
prevalecer nos seguintes termos: se o paciente tiver no gozo pleno de suas
faculdades mentais, em condições de manifestar validamente suas convicções
religiosas, é seu o direito de decidir sobre quaisquer intervenções em seu
próprio corpo, da mesma forma que optou por deslocar-se até o hospital ou
clínica médica.
Argumenta-se neste sentido porque se
a pessoa não pode ser constrangida a procurar o profissional de saúde, da mesma
maneira, é proporcional que lhe seja garantida a autonomia individual de
decidir sobre seu próprio corpo. Dessa forma, a submissão forçada aos cuidados
médicos, no caso das Testemunhas de Jeová, à transfusão de sangue implicaria em
afronta a dignidade humana.
Entretanto, não é esse o raciocínio
tratando-se da situação de perigo eminente de vida. Nesta, a lei penal
previamente faz opção pela vida, conforme o disposto no art.146,§ 3°, I. Sendo
assim, o médico poderá e deverá intervir, sem que sua conduta configure o
delito de constrangimento ilegal.
O perigo eminente de sua vida seria
um conceito, à primeira vista, impreciso. No entanto, entende-se que em algumas
situações como no caso de: hemorragia de grande proporção ou necessidade de
submissão a uma intervenção cirúrgica, ou até mesmo quando está no meio desta,
e se torna imprescindível a transfusão sanguínea para preservação de sua vida,
se o paciente não conseguir exprimir validamente sua recusa à terapia, diante
do seu estado de inconsciência ou incapacidade de se manifestar, o médico, na
posição de garantidos do bem legal "vida", possui o dever ético e
legal de proceder à transfusão.E, ainda, presentes os elementos da urgência e
do perigo imediato, não há outra atitude esperada, até porque a lei penal assim
já determina.
Mesmo havendo a recusa manifestada
pelos responsáveis do paciente, subsiste o dever de agir. Num juízo de
ponderação, o suposto atentado à liberdade individual é tolerado em função de
preponderância do direito à vida, pois, nestes casos, não há manifestação
válida e consciente, que seja forte suficiente para se sobrepuser à preservação
da vida.O princípio da dignidade humana, neste caso, surge por se preservar a vida do enfermo
Resta, porém analisar se a recusa em
receber a transfusão sanguínea pode a princípio, ser qualificado como atitude
suicida, e então, configurar a permissão descrita no art.146, §3°, inc.II, do
CP.
É notório que as Testemunha de Jeová
admitem, ainda que de forma indireta, a superveniência da própria morte, pois
no caso a transfusão sanguínea mostre-se como única solução vital, estes
religiosos preferem a morte.
Porém, no mesmo diante dessas
constatações, acredita-se que não seria justo qualificá-los como suicidas. Na
verdade, tudo dependerá do caso concreto se o médico perceber a presença de uma
conduta suicida, isto é, a intenção deliberada de provocar a própria morte,
deve intervir, pois estará acobertado pela permissão legal de realizar a
transfusão para coibir o suicídio.
Finalmente, apenas a título de
ilustração de quão dramática é a situação fática, citaremos o relato de um
obstetra, descrito na obra de Miguel Kfouri Neto. O médico conta que:
"(...) para salvar a vida de
uma paciente, que se recusava terminantemente, por motivos religiosos, a
consentir em transfusão, após difícil parto, pratiquei tal ato, contra a vontade
de parturiente e de seu marido. A mulher, após obter alta, não foi aceita em
seu lar, pelo cônjuge, nem pôde mais frequentar a Igreja, sendo repudiada por
todos (...)"
(Leiria, C. S. Transfusão de sangue
contra vontade do paciente, Artigos on-line, 10 maio 2012)
Por este relato, pode-se concluir
que se trata de situação extremamente delicada, a qual requer um juízo de
ponderação minucioso, que leve em consideração todos os valores envolvidos. No
entanto, não nos esqueceremos de pessoas não adeptos à religião, e suas
opiniões, como a de Kali, em seu depoimento "revoltado".
"(...)
em se tratando da questão de sangue, as testemunhas de Jeová reconhecem os
"direitos humanos", o direito que a pessoa tem de decidir o que é ou
não melhor pra ela, chega até a comentar que em pleno séc.XXI as pessoas têm de
entendê-las...Mas qual é a reação das testemunhas perante aqueles TJS que
decidiram se tratar com o sangue?
Pois
bem, em pleno "século XXI" estas testemunhas são expulsas de sua
religião e são tratados como leprosos pelos seus antigos irmãos. Estes que
optaram pela transfusão, NÃO TEM DIREITO DE PERMANECER NA SUA RELIGIÃO, são
tratados como bichos por membros da sua própria família. Belo "direitos
humanos" não é mesmo? Isso tudo em pleno Séc.XXI!(...)"
(Kali. Diário da Manhã-on-line, 14 dez 2008)
Com este depoimento temos uma visão
mais clara e abrangente da opinião, e de certa forma muito bem colocada, dos
adeptos a religião. Pois, como foi dito acima, os "direitos humanos"
e a liberdade de escolha parece existir apenas para a religião com um todo,
mais quando se trata de um religioso em particular e de sua liberdade,
observamos que a igreja não é tão maleável assim, não admitindo que seus
membros tenham sua íntima e particular liberdade de optar pelo melhor para si
mesmos.
6.
Questões Médicas
A transfusão
de sangue é um procedimento médico que oferece riscos e benefícios, como
qualquer outro, e tão somente, é indicado ao paciente em casos que não haja
alternativa, sendo este o único meio de salvar a sua vida. Mas, em respeito ao
direito à crença (art. 5º, VI, da CF), o médico deverá adotar tratamentos
alternativos, são eles:
-Afarese:
Nesta, o receptor recebe apenas um hemocomponente específico. O sangue de um
doador que seja compatível é acometido a um aparelho que separa o sangue e
seleciona o hemocomponente necessário, depois de passar pela máquina o sangue
volta ao doador.
-Transfusão Autóloga: Neste tipo de transfusão ocorre que os doados é também o
receptor. O paciente que fora submetido a uma cirurgia, se esta não for
urgência, pode deixar seu sangue coletado para quando houver necessidade,
utiliza-lo. Este procedimento elimina o risco de incompatibilidade e da
transmissão de doenças hematogênicas.
O médico,
ao indicar qualquer procedimento ao paciente, deve em primeiro lugar observar
as escolhas do paciente ou de seus representantes, objetivando sempre o
interesse e o bem-estar do mesmo, como dispõem os artigos 17 e 21, do capitulo
II do Código de Ética Médica, contudo é seu dever também zelar pela vida do
mesmo. E sendo a vida direito superior à vontade, não pode este ceder em razão
do outro.
Em
resposta ao tema polêmico, em que há divergência de opiniões doutrinárias e
decisões jurisprudenciais, as Testemunhas de Jeová criaram, em sistema de rede
mundial, a COLIH-Comissõe de Ligações com Hospitais, que se incumbe de orientar
equipes médicas para aplicação de procedimentos alternativos que evitem a
hemotransfusão, voltado a ajudar pacientes que, em ato volitivo, demonstrem
interesse na transferência para hospitais usuários de tais alternativas.
Frente à
possibilidade de indagações sobre qual deve ser a posição do médico que é
Testemunha de Jeová ao defrontar-se com a possibilidade de prescrever ou
administrar sangue a um paciente que não é TJ, transcrever-nos-emos um artigo
publicado pela sociedade Torre de Vigia (coordenadora das Testemunhas de
Jeová):
"(...)Visto
que o irmão médico é quem determina o que será administrado ao paciente, ele
não prescrevia ou ordenaria a transfusão de sangue, pois a Bíblia é bem
explícita quanto ao assunto. (Gênesis 9:3, 4; Atos 15:28, 29)...Talvez surjam
situações em que outros esperam que o médico prescreva a transfusão de
sangue.Como é que o irmão médico atuaria em tais situações?Na maioria dos casos
é possível transferir o paciente para os cuidados de outro médico...Prevendo a
possibilidade de ocorrer situações de emergência e a transfusão for
indispensável, alguns irmão ajustam a sua rotina de trabalho para evitar ao
máximo situações como essa(...)"
("É
guiado pela Sensível Consciência Cristã?", A Sentinela, 1° out. 1975, p.
598 a 604)
7.
Conclusão
Após
analisar minuciosamente as partes envolvidas no processo, detectando antinomia
de princípios, n entanto, embora haja diferentes visões sobre o tema abordado,
chegando ao consenso de que, como operadores do direito, devemos primar à vida
acima de qualquer justiça subjetiva, buscando sempre respeitar a dignidade da
pessoa humana.
Referências doutrinárias:
História-Testemunha
de Jeová. Enciclopédia livre. 10 maio 2011. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/testemunhas. Acesso em: 10 de maio 2012.
Tradução
do Novo Mundo das Escrituras Sagradas com referências. Sociedade Torre de Vigia
de Bíblias e Tratados de Nova Iorque.1° jan.1984.
Carta
Orientadora sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados. n° 29; 2 out. 1995.
Vade
Mecum, Código Civil e Código Penal.8. Ed. Saraiva, 2009.
O caso das
testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue. Revista Jus Navegandi. Fev.
2005. Disponível em: http://jus.uol.com.br/revista/texto/6641/0-caso-das-testemunhas-de-jeova-e-a-transfusao-de-sangue. Acesso em: 12 mai. 2012